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Padre Antônio Vieira e os judeus Palestra proferida pelo acadêmico Arnaldo Niskier, no Museu Judaico em 19/08/2009.

PADRE ANTÔNIO VIEIRA E OS JUDEUS

“Somos todos semitas espiritualmente.” A afirmação é do Papa Pio XI, que no auge do hitlerismo teve a coragem de publicar uma encíclica contra o nazismo arrogante e desumano. E quem a cita é o escritor Antônio Carlos Vilaça em seu prefácio ao livro que acabei de lançar pela Imago, Padre Antônio Vieira e os judeus. Vilaça acrescenta: “Que bom, que confortador ver-se um jesuíta sair em defesa dos judeus. O anti-semitismo é um absurdo, uma vergonha, um crime. Não tenho dúvida em dizer que Vieira é a maior figura da história colonial do Brasil. Culturalmente, foi. E socialmente. Um líder. Um articulador. Um inspirador. Um contemporâneo do futuro. Pois esse homem singular, poderoso, defendeu os judeus. E os quis defender mais de uma vez, com toda a sua eloquência irresistível e nobre. Um homem como Vieira não podia ser indiferente à causa dos judeus. Soube fazê-lo com um realismo que a nós hoje nos impressiona. Esse padre era um realista.”
O padre Antônio Vieira viveu num período decisivo da história da humanidade, o século XVII, que ele ocupou não só quase inteiro (1608-1697), como marcou também profundamente com o brilho de sua inteligência e a firmeza da sua atuação. Vieira foi um dos raros homens, em todos os tempos, a alcançar um equilíbrio perfeito entre ação e contemplação. Seus sermões e suas cartas bastariam para imortalizá-lo, mas ele não se contentou apenas com o gênio literário: foi missionário e catequista, estadista e diplomata, político e estrategista. Tivesse sede de poder e seria um líder da magnitude de um Richelieu ou de um Mazarino, cardeais da sua época que mandaram na França mais do que os próprios reis.
Mas Vieira era, acima de tudo, um “soldado de Cristo”, um membro obediente da Companhia de Jesus, e pautou sua vida pelos princípios da ordem fundada por Santo Inácio de Loiola em 1540. Prestou os três votos essenciais — obediência, pobreza e castidade, sendo que a obediência era definida, nos estatutos da Companhia, como perinde ac cadaver, “igual à do cadaver”, indo para onde lhe ordenassem sem nunca esboçar a menor reação.
Interessei-me pela relação do padre Antônio Vieira com o que ele chamava “a nação hebraica” por dois motivos essenciais: o primeiro foi a inesquecível conferência a que assisti, na Associação Religiosa Israelita do Rio de Janeiro, quando o poeta Augusto Frederico Schmidt abordou o delicado tema; o segundo se refere à bibliografia de João Francisco Lisboa, patrono da cadeira número 18 da Academia Brasileira de Letras — que hoje ocupo — e que tratou também com muita propriedade a intervenção de Vieira na questão dos índios do Maranhão, igualmente discriminados.
Quando os judeus foram expulsos de vários países da Europa no vendaval da Santa Inquisição no século XVII, Vieira, sem temer os riscos a que se expunha, partiu em sua defesa e chegou até a aconselhar a Portugal:
“E não só virão para este Reino os mercadores que agora são de Holanda e Castela, mas os de Flandres, França, Itália, Alemanha, Veneza, Índias Ocidentais e outros muitos, com o que o Reino se fará poderosíssimo...”
Seus argumentos foram questionados e Vieira padeceu na carne com a intolerância vigente. A sua vida é bem um exemplo que precisa ser conhecido, sobretudo pelas novas gerações brasileiras — afinal, Vieira morou 52 dos seus 89 anos no Brasil. E os judeus serão eternamente reconhecidos à sua memória.
Por mais pragmáticos que fossem os motivos de Vieira na defesa dos “homens de nação”, ele não descurou dos aspectos humanos e religiosos e, principalmente, da liberdade de credo, na sua famosa Proposta feita a el-rei D. João IV em 1643:
“Primeiramente, favorecer aos homens de nação ou admiti-los neste Reino, na forma que se propõe, não é contra lei alguma, divina nem humana, antes é muito conforme aos sagrados cânones, doutrina dos Santos Padres e resoluções de muitos concílios gerais e particulares, que não ponho aqui, por não embaraçar este discurso, e se alegarão, sendo necessário. (...)
Finalmente, o Sumo Pontífice, não só admite o que nós chamamos cristãos-novos (entre os quais e os velhos nenhuma diferença se faz em Itália), senão que, dentro da mesma Roma e em outras cidades, consente sinagogas públicas dos judeus que professarem a Lei de Moisés.
Pois se na cabeça da Igreja se consentem homens que professam publicamente o Judaísmo, por que não admitirá Portugal homens cristãos batizados, de que só pode haver suspeita, que o não serão verdadeiros?”
Pela veemência na sua defesa dos judeus, muitos inquisidores acreditavam sem nenhuma hesitação que Vieira tinha sangue hebraico em suas veias. “Seus desafetos no Maranhão diziam que fora batizado em pé e em todos os tempos foi explorada a calúnia,” escreve o seu biógrafo, João Lúcio de Azevedo; segundo ele, da rigorosa investigação de sangue que procederia o Santo Ofício, foi apurado que, em vez de ascendência judia, Vieira tinha na verdade alguma coisa de mulato, havendo seu pai, Cristóvão Ravasco, por mãe, “uma mulata serviçal na casa dos Condes de Unhão, de onde com o galã, avô de Vieira, foi despedida, por não lhes levarem os amos a bem os amores, que o casamento em seguida consagrou.” Ainda segundo João Lúcio de Azevedo, a bisavó de Vieira teria vindo da África para Portugal como escrava, sendo abundante a população de negros e mulatos no Reino naquela ocasião.

OS SERMÕES

Entre suas obras há um destaque especial para os Sermões, numerosos, que fizeram sucesso nas prédicas realizadas aqui e no exterior. Integram a personalidade corajosa do grande religioso, filósofo, político e orador, além de primoroso latinista.
Sem hierarquizar, mas confiados na extrema atualidade dos conteúdos, queremos lembrar algumas dessas obras-primas da nossa literatura, como é o caso do Sermão sobre a mentira, uma sátira mordaz contra os nossos maiores, na afirmação de João Francisco Lisboa, increpando de mentirosos e maldizentes os procuradores do Estado que voltavam a Lisboa com novas leis contrárias à liberdade dos índios. Recitou sobre a verdade e a mentira um longo discurso, demonstrando que “duas cousas não podem andar juntas: a verdade e a mentira. E porque não podem andar juntas, por isso as temos divididas: a verdade no pregador, a mentira nos ouvintes”.
Fixou-se no M de Maranhão, M de murmurar, M de motejar, M de maldizer, M de malsinar, M de mexericar e sobretudo M de mentir; mentir com as palavras, mentir com as obras, mentir com os pensamentos. Que de todos e por todos os modos se mentia. “No Maranhão até o sol era mentiroso, porque, amanhecendo muito claro e prometendo um formoso dia, de repente e dentro de uma hora o ceu se toldava de nuvens, e começava a chover como no mais entranhado inverno. E daí já não era para admirar que mentissem os habitantes como o ceu que sobre eles influía”.
Contra os poderosos da terra, seus adversários, Vieira lançou o Sermão pregado aos peixes. Exclamava em tom de ameaça: “Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes... Os que muito falam, blasonam e roncam denotam fraqueza... Assim, o melhor conselho é calar.”
Vieram os Sermões do Espírito Santo e da Epifania, ao lado de um grande número de Cartas enviadas com riqueza de detalhes a El-Rei. O primeiro dos Sermões citados foi pregado em São Luís, na igreja da Companhia de Jesus, por ocasião da partida de missão ao Amazonas. Teve que lidar com índios naturais que não sabiam ler nem escrever, mas falavam o que o religioso chamava de línguas brutas, como o nheengaíba, o junina, o tapajó, o teremembê e o mamaianá. Só os nomes já lhe causavam horror.
No Sermão da Epifania, pregado em Lisboa, no dia 6 de janeiro de 1662, depois de ter sido expulso do Maranhão, Vieira assinalou que era preciso trabalhar com os dedos, escrevendo, apontando e interpretando por acenos o que não era possível alcançar por palavras. “São acentos duros e estranhos.”
Ardoroso defensor da justiça, embora tenha advogado a escravidão dos africanos, Vieira foi ainda autor do Sermão da Sexagésima, de 1655, quando defendeu a ideia de que “pregar é como semear”. Combateu valentemente os excessos cometidos pela Inquisição.

CONSELHEIRO DO REI

Crítico da metrópole em relação à colônia, foi um defensor da liberdade religiosa dos judeus e ao se contrapor à Inquisição acabou preso por 813 dias “num covil apertado e escuro”, um sertão frigidíssimo, como costumava se referir ao clima de Coimbra.
No livro “Padre Antônio Vieira e os judeus” (Imago, Rio, 2004), procuramos exaltar esse lado da personalidade do religioso, prestando-lhe merecido reconhecimento. O historiador Hernani Cidade deixou clara essa posição: “O que portanto prejudicou Vieira foi a inclinação para a gente hebreia que os inquisidores sentiam manifestada até à atribuição a D. João IV da futura incorporação, no Reino de Cristo, das dez tribos perdidas de Israel.”
Pregador corajoso e lúcido, Vieira identificou-se com o Velho Testamento, do qual extraiu importantes contribuições aos seus trabalhos. Mereceu de Mendes dos Remédios o seguinte comentário:
“Defesa pronta, desassombrada, eloquente, vigorosa, linguagem forte, lógica incisiva e fulminante. Esse escrito (proposta feita a D. João IV, em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa) estalou como um trovão... O que não devia causar menos espanto, apreensão e temores era o saber-se que o paladino dos cristãos-novos e autor daquela Proposta era um jesuíta, homem então na pujança da vida e do talento, bem aceito na Corte, adorado nos meios aristocráticos e devotos da capital, intimorato, generoso, e cujo saber e habilidade não conheciam limites.”
Sem ser direto na crítica ao Tribunal do Santo Ofício, ainda assim despertou reações contrárias por estar defendendo posições favoráveis ao que constituíam a “gente de nação”, como eram os judeus então conhecidos.
Conselheiro do rei, a ele sugere que sejam vencidas as infidelidades então vigentes “com a espada do judaísmo, assim como os mesmos judeus, quando Deus os governava, conquistaram a terra da Promissão.” Foi incompreendido. Tivesse sido outra a reação, na época, a história de Portugal poderia ser escrita de maneira diferente.
O padre Antônio Vieira nunca ocultou sua grande simpatia pela “nação hebraica”. Era amigo pessoal do rabino Isaac Aboab da Fonseca (1605-1693), cujo tempo de vida coincidiu quase com o de Vieira. No breve período em que exerceu atividades diplomáticas na Holanda, o padre Vieira se aproximou de Aboab, e frequentou a sinagoga para ouvir seus sermões, chegando a escrever elogios à sabedoria religiosa e eloquência do rabino. Outro judeu com quem Vieira manteve uma relação importante foi o rabino da sinagoga de Amsterdã, Manassés ben Israel, autor de uma obra profética, Esperança de Judá, cujo título inspirou a Vieira o da carta conhecida como Esperanças de Portugal. Vieira o conheceu durante a missão de 1647 à Holanda, quando foi à sinagoga de Amsterdã assistir ao serviço religioso e à pregação de Manassés. Segundo observa o biógrafo de Vieira, João Lúcio de Azevedo, “os judeus da Península Ibérica tinham desde 1598 sinagoga em Amsterdã, não ainda o edifício tantas vezes celebrado, se bem que com demasias por monumento insigne, e que só em 1675 se inaugurou, mas uma casa simples de oração. A natural curiosidade levou ali uma vez Antônio Vieira. Assistiu ao serviço religioso e à prédica pelo afamado rabino Manassés ben Israel. É de crer que este, sabendo que ouvinte tinha na assembleia quisesse exibir seus dotes de orador, e não poupasse argumentos com que provar ao cristão amigo a superioridade da antiga lei. À saída, porém, Vieira, sequioso de discussão, foi buscá-lo, tornando-lhe os golpes de retórica e os dois disputaram longo tempo. Eram ambos de igual força dialética, ambos por índole disputadores, ambos versados na Escritura. Eram dois teólogos, dois exegetas, dois sabedores. A rota da espírito de cada um levava-os a encontrarem–se em um ponto de onde depois divergiam. Ligar as extremas distantes, a que por este modo chegavam, era obra impossível. Deixaram a contenda como gladiadores cansados, cada qual por seu lado cantando vitória. Não se contentando Vieira com essa pugna mandou desafio a outro rabino famoso, Saul Levi Mortera, que foi mestre de Spinoza. Este, porém, mais idoso e prudente, lembrado talvez do preceito da sinagoga em que ele e Manassés oficiavam, e segundo o qual não deviam os hebreus, por amor da paz, disputar matérias de crenças com os cristão, acabou recusando o encontro, com o que Vieira mais ruidosamente triunfou. Há quem diga ter o jesuíta convertido Manassés de que o verdadeiro Messias já tinha vindo e era Jesus Cristo; que Manassés por seu turno o convencera do segundo advento daquele que havia de ser o imperador universal e de aí a origem de um tratado que sobre o assunto mais tarde compôs. Se assim foi, Antônio Vieira jamais o confessou, não esquecendo pelo contrário, de publicar a sua vitória. A lenda jesuítica ampliou o caso, para introduzir na biografia, como é de uso nas lendas, o elemento maravilhoso.”
A sinceridade com que se empenhou Vieira na defesa dos judeus reflete-se no alto preço que pagou. Há exatos 440 anos, em 1º de outubro de 1665, o padre Antônio Vieira foi encarcerado em Coimbra num cubículo de quinze por doze palmos (3m30 por 2m64, um palmo equivalendo a 0,22cm). A esta altura o padre tinha 53 anos.
Sabia Vieira que enfrentava um inimigo implacável, capaz do que ele definiria tempos depois de coisas horrendas, quando imputou aos inquisidores as mortes súbitas do Marquês das Minas, da Marquesa de Fronteira e da Duquesa de Cadaval, e a apoplexia de que vitimou D. Rodrigo de Meneses, uma vez que se achavam todos vinculados ao grupo favorável à causa dos judeus. Proclamou Vieira: “Horrendas coisas são as que se imaginam e ainda mais horrendas as que se inferem.”
E, numa demonstração notável do seu espírito de síntese, e do manuseio genial das palavras, ele definiu que “os inquisidores viviam da fé, enquanto os jesuítas morriam por ela.”
Na carta aos judeus de Ruão, de 1646, Vieira faz esta importante reflexão:
“A minha jornada foi feita de perigos e trabalhos, que em nenhuma parte dela faltaram, escapando milagrosamente das mãos dos dunquerqueses e de várias tempestades em que os companheiros padeceram naufrágio; e Deus, que de tantos perigos me guarda, deve ser para algum bem.”
Caberia muito bem, como epitáfio deste grande homem, outra frase profética desta mesma carta:
“As coisas grandes não se acabam de repente; hão mister de tempo e todas têm seu tempo.”

CONCLUSÕES

Das convicções de Vieira em relação à política a ser adotada na questão da gente de nação ele deixaria assinalada na obra em que trabalhava ao morrer, a Clavis Prophetarum/Chave dos profetas, segundo síntese feita por José van den Basselaar, uma autêntica visão do futuro: “Vieira sugere a ideia de meter de posse os judeus convertidos no cristianismo de sua antiga pátria Israel e do seu templo em Jerusalém, onde poderiam praticar sossegadamente os seus ritos tradicionais e sacrifícios. Vieira defendia a pluriformidade da Igreja numa época em que a imensa maioria dos seus correligionários propugnava sua rígida uniformidade.” Ou seja, Vieira antecipou a criação do Estado de Israel em cerca de 250 anos.
A ação de Vieira em favor dos judeus só viria a ser reconhecida oficialmente pelo governo português quase um século depois da sua morte, quando, no reinado de D. José I, o poderoso ministro marquês de Pombal conseguiu do monarca a assinatura do Alvará de 2 de maio de 1773, que acabava, em definitivo, com a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. Ao citar este fato, Teixeira Soares, em sua biografia do marquês de Pombal, observou: “Medida revolucionária, sem dúvida, que deveria ter espantado a gente do tempo, acostumada aos dois séculos de ‘purificações’ feitas pela Inquisição.”
O escritor português Ricardo Jorge (1858-1939), em artigo intitulado Vieira e o Brasil, resumiu as mais notáveis campanhas empreendidas pelo grande jesuíta: “Bate-se contra o poderio das gentes dos Países Baixos e do alto do púlpito, voltado para a custódia do altar, invectiva, desafia o Deus do Ceu para que se mova pelos portugueses. Prega a guerra santa, a inflamar o patriotismo dos defensores do solo paterno. Protege o índio selvagem, como na corte defende corajosamente o judeu.”
Na carta aos judeus de Ruão, de 1646, Vieira faz esta importante reflexão:
“A minha jornada foi feita de perigos e trabalhos, que em nenhuma parte dela faltaram, escapando milagrosamente das mãos dos dunquerqueses e de várias tempestades em que os companheiros padeceram naufrágio; e Deus, que de tantos perigos me guarda, deve ser para algum bem.”
Caberia muito bem, como epitáfio deste grande homem, outra frase profética desta mesma carta:
“As coisas grandes não se acabam de repente; hão mister de tempo e todas têm seu tempo.”

ARNALDO NISKIER da Academia Brasileira de Letras e presidente do CIEE/Rio.

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